15/04/2010

Boa intenção, má solução

Por Marcos Rolim
Zero Hora 11/04/2010

A votação do projeto que exige “ficha limpa” aos candidatos a cargos eletivos no Brasil foi, novamente, adiada no Congresso Nacional. Por certo, muitos dos parlamentares que se opõem ao projeto o fazem em interesse próprio, porque os critérios de inelegibilidade propostos poderiam atingi-los.

Só por isso, é simples e extremamente popular atacar o Congresso em defesa do projeto “moralizador”. Charge de Iotti em Zero Hora de sexta-feira sintetiza esta apreensão: políticos retratados como animais peçonhentos, roedores, aracnídeos e felinos exclamam: “Precisamos pensar mais sobre o assunto”.

Ato falho ou não, a legenda escolhida pelo chargista expressa um desafio verdadeiro para o qual a imprensa deveria estar atenta. De fato, é preciso pensar mais sobre o assunto. O projeto “ficha limpa” recebeu 1,5 milhão de assinaturas e expressa um movimento sério de luta pela decência na política.

O que importa saber, entretanto, é se o que está sendo proposto constitui medida eficaz e justa. Chamo a atenção, de início, para um fato histórico: a ideia da “ficha limpa” já foi apresentada no Brasil uma vez. Foi a ditadura militar que, com a Emenda Constitucional nº 1 e a Lei Complementar nº 5, estabeleceu a cassação dos direitos políticos e a inelegibilidade por “vida pregressa”; vale dizer: sem sentença condenatória com trânsito em julgado.

A Constituição Brasileira, em seu artigo 5º, inciso LVII, assegura que: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Este é o princípio da presunção da inocência, uma das garantias basilares do Estado de Direito.

O que o “projeto ficha limpa” pretende é estabelecer o “princípio de presunção de culpa”. Em seus termos originais, o projeto apresentou como inelegíveis “os condenados em primeira instância ou que tiverem contra si denúncia recebida por órgão colegiado”, o que – com o perdão da sinceridade – assinala uma das ideias mais autoritárias já apresentadas na democracia brasileira.

A nova redação do projeto ameniza este ponto, ao falar em “condenação em segunda instância ou órgão colegiado”, mas o problema de fundo permanece o mesmo: condenados em segunda instância, sem trânsito em julgado da sentença, seguem sendo inocentes.

O risco, aqui, é o de excluir do processo eleitoral quem tenha sido alvo de processos por motivação política, o que constitui perigoso precedente. No mais, o conceito de “ficha suja” não é apropriado para definir quem quer que seja. Muitos dos corruptos brasileiros possuem “ficha limpa” – especialmente os mais espertos, que não deixam rastros.

Por outro lado, uma lei do tipo na África do Sul não teria permitido a eleição de Nelson Mandela, cuja “ficha suja” envolvia condenação por “terrorismo”. Várias lideranças sindicais brasileiras possuem condenações em segunda instância por “crimes” que envolveram participação em greves ou em lutas populares; devemos impedir que se candidatem?

Mas, se pessoas com “ficha suja” não podem se candidatar, por que mesmo poderiam votar? Nos EUA, condenados perdem em definitivo o direito de votar, o que tem sido muito funcional para excluir do processo democrático milhões de pobres e negros, lá como aqui, “opções preferenciais” do direito penal. E a imprensa? Condenações em segunda instância assinalam uma “mídia ficha suja” no Brasil? Se a moda pega…

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