Por Thomas Keiserman, empresário e assessor de investimentos
Tragédia natural: diz-se do evento que causa grandes danos (humanos, patrimoniais, ambientais) e cuja origem está ligada a fenômenos naturais. Terremotos, tsunamis, furacões ou tempestades se encaixam nesta descrição. Brumadinho, não. O evento não decorreu de nenhum desfeito da natureza à população e aos trabalhadores da mineradora: a barragem não era natural; os dejetos, embora minerais, também não o eram, pois lá não foram depositados naturalmente. E o rompimento sabidamente não se deu por terremoto, o que poderia ser o único motivo pelo qual o acidente pudesse, talvez, ser considerado natural.
Fato é que o país está acostumado a sediar – e, posteriormente, acompanhar suas coberturas midiáticas – catástrofes não naturais de grandes proporções. Estas, por definição, decorrem de ações ou inações do próprio ser humano.
Mas por que será que aqui ocorrem em tão grande número? O meu palpite mais forte: somos o país do depois. As pessoas, os governos, as empresas e a mídia só resolvem tomar atitudes depois que a merda aconteceu. Depois de Mariana, foram semanas e meses de “medidas urgentes” mirando outras barragens (as aspas são para, de fato, dar-lhes tom pejorativo, já que sempre tomadas a posteriori). Após terem sobrado do Museu Nacional apenas as paredes externas, choveram críticas sobre o descaso dos governos com o patrimônio histórico e cultural brasileiro. Precisou um prédio abandonado do centro de São Paulo, invadido e habitado por pessoas vulneráveis, pegar fogo, desabar por inteiro e deixar sete vítimas para que sociedade e a prefeitura acordassem para os possíveis riscos de tais invasões e habitações irregulares. E, sabemos, foi apenas depois da Kiss que assistimos a prefeituras e corpos de bombeiros cassando (quase indiscriminadamente) alvarás de bares e casas noturnas.
Coloquemos mais o dedo na ferida de nossa memória coletiva ao relembrar o Bateau Mouche. No último Réveillon, completaram-se 30 anos daquela trágica noite em que 55 morreram após o naufrágio de um barco cujo destino não poderia ser outro senão o fundo da Baía de Guanabara. O excelente documentário Arquivo N – Os 30 Anos do Naufrágio do Bateau Mouche explica muito bem a sucessão de ações e omissões humanas. Certamente houve medidas práticas, implementadas nos dias e semanas que se seguiram, com o intuito de que casos similares não se repetissem. Depois, como em Brumadinho.
Ser o país do depois não é uma conclusão, mas uma constatação. A lição que dela decorre é bastante óbvia, embora pareça que uma quantidade incrível de agentes da sociedade (os mesmos citados anteriormente) a desconheça ou a esqueça frequentemente. Se somos o país do depois é porque somos o país da negligência, da falta de atitudes preventivas. Soa ridiculamente óbvio? Vamos explorar um pouco mais o assunto para ver se o é tanto assim?
O aprendizado de bebês e crianças se dá principalmente através da tentativa e erro. Se por acaso um pai nunca ensinar a uma criança que fogo machuca, ela vai acabar aprendendo isso, mais cedo ou mais tarde. Na pele, literalmente. O approach brasileiro no gerenciamento de riscos costuma ser assim, infantil: só tomamos providências após já termos errado. Tínhamos, entretanto, plena capacidade para facilmente concluir, a priori do erro, que tomar providências era imperativo. Afinal, estamos no século 21: o conhecimento e tecnologias são vastos e disponíveis. Ou seja, não precisaríamos aprender errando.
Assim, depois do caso Kiss, buscou-se melhorar a segurança de casas noturnas, afinal são de fato estabelecimentos de muito risco (alta densidade de pessoas, som alto, luminosidade baixa, peculiaridade dos espaços físicos…). Mas e hospitais, também não têm especificidades que o tornam estruturas sensíveis? Ali temos produtos químicos inflamáveis, pessoas com extrema dificuldade de locomoção, edificações grandes, labirínticas e desconhecidas para boa parte dos indivíduos que lá dentro estão. Não é difícil de se imaginar o risco de perdas humanas que um incêndio de grandes proporções poderia gerar – sem falar nos danos potenciais de segunda ordem à comunidade, com o fechamento posterior, mesmo que temporário, da instituição.
E será que nossos estádios e pontes têm recebido a devida atenção preventiva? Ou precisaremos uma tragédia para entendermos que a força da gravidade existe e pode ser bastante impiedosa com quem a desafia? Brumadinho não teria ocorrido não fosse ela.
A cidade de São Paulo por exemplo, recentemente precisou ver um vão de um viaduto na Marginal Pinheiros ceder para se dar conta de que algumas de suas pontes e alguns de viadutos representam sério risco à vida de seus usuários. Pergunto-me se as outras prefeituras das grandes cidades do país e os órgãos estaduais e federais se mexeram ou apenas pensaram que “é um problema de São Paulo”.
A limitação de visão do brasileiro é realmente impressionante! O acidente no CT do Flamengo gerou questionamentos sobre como estão as condições nos outros alojamentos na cidade do Rio (quiçá no Brasil), bem como a utilização de espuma de poliuretano em divisórias internas de contêineres de aluguel. Tais questionamentos precisam ser feitos?
Será que é tão, mas tão difícil fazer os diversos agentes da sociedade entenderem que risco se estima pela multiplicação da (1) probabilidade estimada de um evento ocorrer pelo (2) dano potencial – humano, material ou natural – que este evento poderá gerar? É uma definição/equação simplíssima, com duas variáveis. Porém extremamente poderosa.
Há muitos contextos em que incêndios podem gerar danos potenciais enormes. Assim, se se pretende de fato agir preventivamente daqui para adiante, assistir autoridades focando-se apenas em alojamentos de times de futebol de uma cidade – porque recém tivemos um evento em contexto similar – é gozar da capacidade crítica que um cérebro humano nos possibilita.
Moral da história: ser o país do depois significa, obrigatoriamente, não ser o país do antes. E não ser o país do antes significa que a nossa sociedade não dá bola para riscos relevantes os quais ela nunca vivenciou: somos incapazes de utilizar nossos cérebros para identificarmos a priori riscos potenciais controláveis e agirmos proativamente sobre eles.
O país do esquecimento
Mas o Brasil não é só o país do depois. É também o país do esquecimento – e aqui serei tão curto quanto é a memória da nossa sociedade. Passados os dias ou semanas de comoção nacional, a poeira baixa. As providências são tomadas enxergando apenas o que está em um passado próximo. Quando o fio do tempo vai passando por nós e aquela catástrofe maior já está lá longe, esquecemos. E, por conclusão lógica, se os agentes assim esquecem o que se passou, esquecidas também são as famosas “medidas” tomadas no pós-evento.
Interessante que esta falta de memória inclusive invalida a característica infantil (tentativa e erro) de nosso approach para gerenciamento de riscos. Afinal, a criança que se queima com fogo porque nunca a alertaram provavelmente nunca esquecerá, por toda sua vida, que fogo queima. Na Kiss, a fumaça e o fogo mataram 242. Será que as providências tomadas à época ainda estão sendo praticadas, fiscalizadas, melhoradas? Ou os agentes que de alguma forma têm responsabilidade sobre a segurança de casas noturnas (empresários, arquitetos, trabalhadores, frequentadores, órgãos fiscalizadores) esqueceram que fogo e fumaça em danceteria matam (e muito)?
O país da miopia
Por fim, o Brasil é o país das grandes proporções. Mas com isso não quero dizer que nossas catástrofes têm proporções maiores do que as dos outros; refiro-me ao fato de que a sociedade se comove muito, mas apenas com tragédias de grandes proporções. Assim, se em nossa maneira de (não) gerenciar riscos, em um primeiro momento somos infantis e, em um segundo, deixamos de sê-lo – dado que esquecemos o que aprendemos com nossos erros –, a todos os momentos somos míopes: enxergamos apenas as coisas grandes que ocorrem na frente de todos, aquelas impossíveis de não enxergar. As “pequenas” tragédias não naturais, diárias, não passam de mais uma manchete dentre as inúmeras geradas a cada hora em um país gigante como o nosso. Passa o dia, está esquecido. A não ser que o ocorrido tenha vitimado ricos, famosos, crianças, adolescentes, ou então que ocorra em um dos centros do poder midiático do país, tragédias não naturais de pequenas proporções passam sem que as famosas “medidas” sequer sejam cogitadas.
Explorarei um exemplo apenas, bastante trivial e realista. Acidentes de trânsito em estradas ocorrem por alguns motivos – imprudência e/ou falha humana, falha técnica de veículos, deficiência na qualidade das vias, entre outros. Me focarei no último, afinal, se a falta de qualidade em uma estrada tem potencial de causar muitas mortes, estamos claramente diante de um caso de catástrofe não natural. Estradas foram construídas por humanos, bem como humanos (os gestores da rodovia) têm plena capacidade de identificar possíveis pontos de uma rodovia que gerem riscos – mesmo que lá nunca tenham ocorrido mortes, nem mesmo acidentes. Logo, estamos de acordo que é não natural. Mas estamos diante de uma catástrofe?
É aí que quero chegar. Parece-me que a maioria das pessoas não considera catástrofe um carro que não venceu uma dada curva, capotou e gerou a morte de dois de seus ocupantes. Interpretam como uma fatalidade. Mas e se, em média, 23 pessoas por ano, nos últimos 20 anos, tiverem perdido a vida em circunstâncias parecidas apenas naquela curva? Estamos ou não diante de uma catástrofe?
Curvas de rodovias, se bem feitas, têm todas algo chamado de superelevação – uma inclinação no pavimento, perpendicular ao eixo da estrada, que contrapõe a inércia do veículo e nos ajuda a realizar a curva de forma mais segura e menos desconfortável. É algo que nem notamos, mas está lá, qualquer estrada minimamente bem projetada e construída tem.
E quando a tal superelevação inexiste ou tem inclinação insuficiente para a velocidade da rodovia e o raio da curva? Este é um tipo de falha técnica, geralmente gestado da incompetência e negligência na construção da rodovia, perpetuado na incompetência e negligência da vistoria feita pelo contratante – geralmente o governo – logo após a finalização da construção. E esta simples falha técnica, em apenas uma curva, pode, de verdade, causar mais mortes ao longo dos anos do que Brumadinho. Mas não apenas este tipo de falha: rodovias, edifícios, aeroportos, barragens, pontes, hospitais, barcos, navios, trens, ferrovias, remédios, vacinas, eletrodomésticos, indústrias e mais uma miríade de coisas que o homem constrói, utiliza, habita, produz e frequenta escondem riscos potenciais muito grandes, que, se negligenciados ou mal geridos, podem gerar tragédias de grandes proporções.
Muitas vezes, como no caso do carro dos dois passageiros, a tragédia é composta de “minieventos”, que não saem na mídia de abrangência nacional e não chegam à mesa das autoridades. Mas questiono: a autoridade responsável por aquela rodovia (não interessa se privada ou pública), após dois, três ou quatro acidentes naquele ponto (com ou sem mortes), não teria indícios suficientes para investigar proativamente e agir preventivamente?
Ser o país míope, das grandes proporções, é isto: só dar atenção àquelas catástrofes que geram danos gigantescos e que ocorrem de uma hora para outra; é não conseguir enxergar que tragédias não naturais, logo evitáveis, estão ocorrendo continuamente debaixo dos nossos olhos e não as identificamos. Ou seja, pior do que míope, no gerenciamento de riscos o Brasil é cego.
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