Com recursos da ordem de pelo menos R$ 8 bilhões a receber do governo federal, via ações judiciais, a CEEE poderia quitar a dívida de cerca de R$ 3 bilhões em ICMS e ainda teria dinheiro para investir sem a necessidade de ser privatizada. É o que aponta a presidente do Sindicato dos Eletricitários do Rio Grande do Sul (SENERGISUL), Ana Maria Spadari, para quem a empresa só não é lucrativa por má gestão.
Contrária à privatização, a entidade acredita que a passagem da companhia para a iniciativa privada trará prejuízos ao Estado e à população. Na avaliação da presidente, a CEEE sofre com um “sucateamento intencional” a fim de justificar a sua venda. Confira a entrevista concedida por ela à reportagem da União Gaúcha.
União Gaúcha – O Sindicato dos Eletricitários é contra a privatização? Por quê?
Ana Maria Spadari – Sim, somos radicalmente contra, tendo em vista que energia elétrica é um bem essencial, onde todas as pessoas têm o direito a ter energia independentemente de poder aquisitivo. Isso só é possível se o Estado estiver presente. São investimentos altíssimos para se construir, por exemplo, uma empresa como a CEEE, que é do povo gaúcho, tem mais de 70 anos, e atendeu as necessidades de toda a sociedade, inclusive alavancando o desenvolvimento do Estado. Hoje, que ela está consolidada, onde não se fazem mais necessários grandes investimentos, vem a iniciativa privada e adquire esse bem por um preço insignificante. Independentemente do valor que venham a conseguir com a venda da empresa, quem perde é a sociedade gaúcha. Podemos comprovar o que estou dizendo. Foi feita uma pesquisa nas áreas em que já foi vendida a CEEE, dois terços em 1997, sobre a satisfação da sociedade em relação aos serviços prestados. São imensas as queixas da população atendida por outra empresa, porque a lógica da iniciativa privada é diferente de uma estatal. A iniciativa privada trabalha visando o lucro e a estatal não tem isso como fundamento de empresa pública. Ela tem um atendimento a todos, da mesma forma, com preços justos.
União Gaúcha – Mas o preço da tarifa é determinado pela ANEEL, certo?
Ana Maria Spadari – O preço, hoje, no Brasil, ainda é pela ANEEL, tendo em vista que tínhamos praticamente 100% do setor estatal. O que vai mudar ao longo do tempo? Qualquer pessoa tem capacidade para entender que o órgão regulador não será mais via Estado. A iniciativa privada não vai se submeter a esse tipo de controle. Já não se submete hoje, porque, nas regiões não atendidas pelas estatais, há imensos registros de queixas, e a ANEEL pouco faz. Hoje, ainda, ela regula o setor na questão do preço da tarifa, mas no momento que isso for majoritariamente privado, o empresariado vai se submeter? É uma questão que tem que ser muito bem avaliada. E assusta o empresariado brasileiro não ter se dado conta, ainda, de algumas coisas que são sérias, inclusive na cadeia produtiva. As pequenas empresas, por exemplo, que oferecem todo o material elétrico: sendo uma chinesa que, ao que tudo indica, vai comprar o resto da empresa aqui no Rio Grande do Sul, caso se concretize a venda, ela não vai usar a indústria nacional. Eles vão trazer produtos importados. É natural que seja assim.
União Gaúcha – E diferentemente de outros setores, em que a concorrência pode fazer com que se pense em preço, não é o caso da energia elétrica?
Ana Maria Spadari – Não é mais o caso da energia elétrica. Foi muito ruim ter saído da Constituição Estadual (o fato) de que não poderia ser monopólio. Com a retirada do plebiscito (sobre a privatização), acabou essa discussão que, para nós, é uma coisa muito séria e deveria ser levada em conta. Tu fica no domínio, no monopólio, por exemplo, dependendo da iniciativa privada. Que força o empresariado terá frente a um grupo empresarial internacional? São questões que nos preocupam enquanto cidadãos do Estado do Rio Grande do Sul e enquanto brasileiros. É um setor estratégico. Incrível que o Estado abra mão e sem uma consulta popular, sem que o povo tenha a noção exata do que está acontecendo. Porque, na realidade, o que está acontecendo é que está sendo atropelada a questão e não se conseguiu discutir com a sociedade e mostrar os contrapontos. A população quer chegar em casa e ter energia. Mas não é tão simples assim. O povo está habituado a chegar em casa e ter energia porque a CEEE era uma estatal que atendia todo o Estado do Rio Grande do Sul. Basta ver que, onde não é mais, já tem problema de ficarem mais de 48 ou 72 horas sem resposta para falta de energia elétrica. E não é o sindicato que está dizendo isso. A população gaúcha já disse. Aconteceu uma plenária na Assembleia Legislativa, com mais de 700 produtores micro, pequenos, do Estado do Rio Grande do Sul, onde foram assustadoras as reclamações dos produtores de leite, por exemplo, que têm uma urgência e não podem ficar sem energia, e ficavam sem resposta para a demanda. É complicado.
União Gaúcha – Essa pesquisa com os consumidores, citada pela senhora no começo da entrevista, foi feita pelo sindicato ou outra entidade?
Ana Maria Spadari – Foram amplos debates que a Assembleia Legislativa realizou com os consumidores em 2016 e 2017. Fizemos reuniões em todas as Câmaras Municipais do Rio Grande do Sul. O Sindicato fez e a Assembleia participou, quando o deputado Edegar Pretto era presidente. Fomos por todo o Estado fazer esses debates, discutir a CEEE no Interior, nas Câmaras de Vereadores, onde se conseguiu mais de 300 moções de apoio à CEEE estatal. Percorremos todo o Estado, Senergisul, vereadores, prefeitos.
União Gaúcha – Na sua avaliação, quais as alternativas para quitar as dívidas da CEEE-D, já que o déficit financeiro da empresa é apontado pelo governo como o principal argumento para a privatização?
Ana Maria Spadari – Isso não se sustenta. Se o governo é o maior acionista da empresa, é o dono majoritário, como deixou chegar nesse ponto? Isso é questionável. São números, e o papel aceita tudo. Há uma má gestão para justificar a venda. Eu diria que, desde o governo do Sartori até a continuidade do governo Leite, o que se fez com a CEEE foi um sucateamento intencional. Foi proposital levar a CEEE à essa situação. Se eu sou a diretora financeira da CEEE, indicação do governador, que é o acionista majoritário, não vou repassar o ICMS? Qual o motivo para não repassar? Se a gente conseguisse discutir isso com clareza com toda a população, o que os trabalhadores diriam é que o sucateamento da CEEE foi proposital para justificar uma venda que não se justifica. Ninguém abre mão do poder de oferecer a grandes parques que viessem para cá, grupos empresariais que quisessem se instalar no Rio Grande do Sul, o que se precisa: uma energia confiável, uma energia com preço justo e uma qualidade de energia. Tu não vai instalar empresa nenhuma onde não tem energia elétrica e água. Então, como tu abre mão desse poder? Incrível como um governo abre mão disso.
União Gaúcha – O governo argumenta que está usando o ICMS para o operacional.
Ana Maria Spadari – Coloca outro gestor lá que nós provamos que a CEEE é viável. Se qualquer outra distribuidora se mantém, como a CEEE, não, se ela vende o mesmo produto, com o mesmo valor? Como justifica isso? Não tem justificativa. Quando tu quer provar uma coisa, acha argumentos para isso. Agora, numa discussão séria, coerente, numa discussão onde duas empresas fornecem o mesmo produto, como uma se sustenta e dá lucro, um lucro fantástico, e como outra não se sustenta e apresenta déficit? Só tem uma explicação, gestão, é questão de gerenciamento. Ou tu é um bom gestor ou não é. Agora, quando tu entra para a empresa com a orientação de quebrar a empresa, aí…
União Gaúcha – Qual seria o caminho para o pagamento das dívidas?
Ana Maria Spadari – Eu diria que colocando um excelente gestor, a CEEE vai dar lucro como qualquer outra empresa distribuidora de energia elétrica. Não tem como vender um produto e não receber. Se tu vende e recebe, o que está faltando é gestão. Vão dizer que existe muita fraude, muito “gato”, que tem bairros inteiros que nem 50% da população está ligada. Volto a dizer, isso é gestão. Como eu coloco o produto lá? Eu entrego a energia e não cobro? Tudo que formos discutir nesse aspecto de administração, vou afirmar que é gestão. É uma má gestão. Eu não estou sendo um ótimo gestor. Qual o motivo que a CEEE não está recebendo? Outra coisa: qual é o empresário que deixa prefeituras como a de Pelotas com uma dívida fabulosa com a empresa por anos a fio? Tem prefeituras que devem há mais de 10, 15 anos. Tu é empresária, tu vai fazer isso com tua empresa? Não, tu vai fazer só se for apadrinhamento político, se for parceria política. Agora, quem não cobrou essas dívidas? A CEEE está nesta situação por má gestão. Somente essas duas últimas gestões? Não, mas essas agravaram 90% dos problemas. Quais são os problemas da estatal CEEE? Falta de uma gestão séria, competente e comprometida com a empresa, e não em fazer favores e em ficar na mão de políticos que dizem de quem é para cobrar ou não é para cobrar. Uma empresa privada não deixaria prefeituras por 10 ou 15 anos com dívidas. Gostaria que fosse feita uma pesquisa na iniciativa privada para saber se tem alguma prefeitura com essa dívida. Não tem, porque na iniciativa privada isso não acontece. E não é só prefeitura, tem diversos órgãos públicos que devem para a CEEE há mais de 10 anos. Aí não tem como dar certo.
União Gaúcha – Atualmente, a CEEE é a pior no ranking da ANEEL e aparece, a cada ano, atrás da RGE. Como se chegou a essa situação?
Ana Maria Spadari – Gestão. As empresas têm indicadores para atingir. Se tu olhares os indicadores, por exemplo, do início do governo do Sartori, nós éramos destaque. O que aconteceu de lá para cá foi o dito sucateamento. Tu não investe nas áreas de ponta, nas áreas fim, e aí claro que teus indicadores vão cair. Mas é o gestor quem vai definir as prioridades da empresa. E, desde o governo Sartori, continuando agora no Eduardo Leite, a questão deles é vender. Eles assumiram dizendo que venderiam a CEEE. Então, se ele é o dono da empresa e diz isso, o que vai sobrar?Quem está lá é gestor deles, indicação de governador, e eles estão lá trabalhando para isso (vender).
União Gaúcha – Algumas fontes apontam essa dificuldade para investir na CEEE com origem na privatização de parte da empresa em 1997. A senhora avalia que pode ter essa relação?
Ana Maria Spadari – Eu diria que não. A CEEE piorou bastante nos últimos 10 anos. Na realidade, o que ficou muito ruim foram questões de tarifas, nacional, reguladas pelo setor, que teve problemas para todas as distribuidoras do Brasil. Claro que com o déficit que a CEEE ficou quando da venda em 1997, que ela entregou a melhor parte e o Estado ficou com as dívidas, realmente isso trouxe um prejuízo. Mas, se tivesse sido feita uma ótima gestão de lá para cá, isso teria sido sanado. O problema é que se agravou. Uma contextualização é a tarifa, que houve em determinado momento uma substituição de cálculo de tarifas e prejudicou todas as distribuidoras e isso se agravou na CEEE que já tinha ficado com dívida muito grande da venda em 1997. Isso é verdade, a dívida ficou para o Estado. Entregaram a parte boa, o filé, sem dívida nenhuma, e a parte menor, que ficou estatal, ficou com dívida que já existia daquela época. Natural que se agravasse sem um bom gestor. Se tivesse feito ótima gestão nesses 22 anos que se passaram, teria amenizado o problema, teria buscado recurso. A CEEE tem muito dinheiro para receber do governo federal, que nunca o governador mexeu uma caneta sequer para ir buscar. A CEEE tem, tranquilamente, R$ 12 bilhões a receber, de conta de energia elétrica. Ela já recebeu um pouco e ainda teria, dívida histórica, R$ 8 bilhões, que atualizando passaria dos R$ 10 bilhões. E o governador nunca foi buscar esse dinheiro, nunca foi no governo federal negociar. O governo federal deve para a CEEE. Isso vem de um encontro de contas, de cálculo de conta de energia elétrica. É uma conta que não incluía uma folha de pagamento da CEEE, dos ex-autárquicos, na tarifa de energia. A CEEE pagava e a ANEEL não repassava por essa folha de pagamento. A CEEE já ganhou R$ 4 bilhões no governo do Tarso Genro e tem mais R$ 8 bilhões para buscar (sem considerar a correção). Como não vai buscar isso? Ela tem o dobro do valor estimado na venda para receber de crédito e nem o Sartori, muito menos o Leite, foram buscar. Aliás, eles silenciam sobre isso. E adoram dizer que depende de negociação. Mas tudo depende de negociação. Se tu já ganhou a primeira parte do mesmo processo e já recebeu R$ 4 bilhões, por que não senta com o governo federal? E pode até fazer um acordo, por que não, sendo para trazer recurso inclusive para o Rio Grande do Sul? É o mesmo processo já ganho, mas a segunda parte. A qualquer momento pode sair, por que não negocia? Bom para a União e bom para nós.
União Gaúcha – Por que a CEEE não consegue pagar o ICMS?
Ana Maria Spadari – Por decisão política e má gestão.
União Gaúcha -Na avaliação do sindicato, o modelo de privatização previsto traz prejuízos financeiros aos cofres do Estado?
Ana Maria Spadari – Acredito e afirmo que sim. Tu nao pode abrir mão de uma empresa tua, que, com ótima gestão te traria lucro. Vai deixar de ter essa empresa tua, no caso, do Estado, e vai se contentar em receber só o ICMS. Está deixando de gerar postos de trabalho, de atender a população do Rio Grande do Sul numa marca histórica que é a CEEE, consolidada no Estado, e abre mão dessa empresa que poderia, além do ICMS, trazer alta lucratividade, por um momento ideológico do partido que está no governo. Ele está no governo, não é o dono da CEEE. Ele é o gestor temporário. A cada quatro anos, muda a gestão no Rio Grande do Sul. Ele trouxe para ele, no caso o PSDB e MDB, a prerrogativa de vender um patrimônio dos gaúchos. Porque, na realidade, a CEEE foi construída com o dinheiro de cada cidadão. A CEEE não foi construída com dinheiro do Estado do Rio Grande do Sul. O Estado nunca investiu na CEEE. A CEEE se autofinanciou. Ela não usa dinheiro do caixa do Rio Grande do Sul, nunca usou. Tudo o que ela investiu, todas as grandes obras, todas as usinas, todos os parques geradores da CEEE foram investimentos dela. Quem pagou foi o contribuinte. A CEEE é dos gaúchos, sim. Como tu discute isso com o povo? Essas discussões têm que se fazer na escola, com os estudantes, isso que nos faltou e falta enquanto cidadãos, essa formação de onde o Estado tem que estar e por quê. Não é só um ponto de vista, é para atender a necessidade mínima. Tem que ter energia em todos os lugares do Rio Grande do Sul. É impossível imaginar hoje que algumas cidades ou municípios não tenham energia elétrica ou não tenham internet, por exemplo. Isso é compromisso do Estado. A iniciativa privada não vai investir em uma rede que vai levar 20 anos para se pagar. O Estado tem essa obrigação de levar para todo cidadão, para o micro, o médio, o agricultor, a agricultura familiar.
União Gaúcha – Para justificar a privatização, o governo cita o risco de a CEEE perder a concessão. Esse risco é real?
Ana Maria Spadari – É real, desde que o governo queira. Ele está fazendo tudo para que isso aconteça. É real porque o governo está trabalhando para isso. Quando tu não atinge as metas, quando tu sucateia a empresa, quando deixa de pagar as contas, no caso o ICMS, quando tu leva a empresa ao nível que ela chegou, tu está trabalhando para isso acontecer. Eu diria que (dizer que se não vender vai perder a concessão) é uma forma de terrorismo. Estou trabalhando para isso. Se eu não trabalhar para isso, eu não perco. Ao contrário, tenho que trabalhar para atingir as metas e deixar minha empresa no nível que o órgão regulador exige. Se não trabalho para isso, sou péssimo gestor.
Jornalista Carla Dutra
foto: Guilherme Santos/Sul21
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