08/03/2012

Pague um, leve dois, três, quatro…

André Petry
Revista Veja (05/03/2012)

Só o câmbio favorável não explica o fenômeno dos preços baixos que mesmeriza os brasileiros que fazem compras nos Estados Unidos

Flávia nem ficou grávida, mas ela e o marido já decidiram onde vão comprar o enxoval do futuro bebê. Será nos Estados Unidos. O casal sabe do que está falando. Eles já estiveram em vários outlets, os centros de compras americanos que oferecem preços arrasadores. Primeiro foram a um em Orlando, em 2007. Depois, visitaram outlets em Miami, Los Angeles e Detroit. Na semana do Carnaval, estavam no Woodbury Common Premium Outlets, a uma hora de carro de Nova York. "Aqui há mais lojas de boas marcas do que normalmente se encontra em outlets. Tem até Prada e Burberry", diz Flávia Figueiredo, 30 anos. O marido, Humberto Rodrigues, 34, não disfarça o ar de enfado com a maratona nas lojas, mas aproveita: "Não Compro mais roupa no Brasil". Ele calcula que, quando gasta o equivalente a 1 800 reais nos Estados Unidos, gastaria, para comprar o mesmo, entre 4000 e 5000 reais no Brasil. "A única facilidade do Brasil em relação aos Estados Unidos é o parcelamento. Nos EUA, é tudo à vista."

O casal de Belo Horizonte – ela trabalha na academia da família, ele é sócio em um hotel – faz parte do mais duradouro ciclo de brasileiros indo às compras no exterior de que se tem notícia. O período anterior, de 1995 a 1998, foi mais curto e mais austero. No auge, os brasileiros gastaram 5,7 bilhões de dólares anuais. Agora, é todo superlativo. Iniciado em 2004, o atual ciclo está entrando no nono ano, e, em volume de dinheiro, é um recorde atrás do outro. A maior parte sempre fica em Nova York e Miami, destinos preferidos dos compradores brasileiros. Nova York recebe mais ingleses e canadenses, mas o maior gasto é brasileiro – 1,6 bilhão de dólares em 2010. Os brasileiros gastam mais que qualquer outro povo e só não são campeões mundiais de aumento nas despesas ano após ano porque a liderança, nesse quesito, é dos chineses.

A revoada de brasileiros para o exterior deve-se, em parte, ao preço extorsivo cobrado no Brasil por produtos e serviços. Tome-se o caso do iPhone. Em Nova York, compra-se um iPhone 4S, 32 gigabytes, desbloqueado, por 815 dólares. No Brasil, ele custa mais que o dobro, 1650 dólares – é um dos preços mais altos do mundo. O custo Brasil – feito de impostos, taxas, ineficiência, infraestrutura precária, mão de obra cara e pouco qualificada – é hoje muito maior que o custo mundo.

A revoada atual é animada também pelo câmbio favorável. Depois do franco suíço e das coroas norueguesa e sueca; o real é a moeda mais valorizada do mundo. Com o dólar turismo a 1,82 real, um brasileiro paga 351 reais por um par de tênis da Asics em Nova York. No Brasil, o mesmo artigo custa 800 reais. Mas, se o dólar disparasse estupidamente – para 3 reais, por exemplo -, ele custaria 580 reais, ainda bem menos que os 800 reais cobrados aqui. É que, por trás do câmbio, há razões menos transitórias para a diferença de preço. Uma delas é o peso dos impostos. "Os americanos tributam mais a renda e a propriedade que o consumo. O Brasil faz o inverso, punindo os mais pobres", diz o economista Marcel Solimeo, da Associação Comercial de São Paulo. Chicago tem o maior imposto sobre consumo das metrópoles americanas: 9,5%. Mas não é páreo para o Brasil, onde o imposto equivalente, o ICMS, varia de 16% a 18% e, em casos excepcionais, chega a 25%. .

Na realidade, o caso brasileiro é ainda pior porque nossos gênios tributários criaram uma jabuticaba: é o "imposto por dentro", ou seja, paga-se imposto sobre o próprio imposto. Por exemplo: se o cálculo fosse normal, um carrinho de bebê de 400 reais sairia por 472 reais – ou seja, 400 reais mais 18%. Na anormalidade brasileira, o carrinho sairá por 487 reais. Para isso, considera-se que os 400 reais não correspondem a 100% da base de cálculo do imposto, mas a apenas 82% (100% menos 18%). Em seguida, dividindo-se os 400 reais por 82%, tem-se o exorbitante preço final de 487 reais. Em Chicago, cidade de tributação elevada, o mesmo carrinho custaria 438 reais. Uma diferença de 49 reais apenas em imposto sobre o consumo. Por isso, os brasileiros são visita rotineira nos outlets americanos. Sawgrass Mills, a menos de uma hora de Miami, tem restaurante brasileiro (bufê completo, 27 reais). Jersey Gardens, a cinco minutos de um dos aeroportos que servem Nova York, recebe brasileiros que descem do avião e vão às compras antes de passar no hotel. Woodbury, onde o casal de Belo Horizonte esteve no Carnaval, tem 220 lojas. Os alto-falantes dão avisos em português.

A esmagadora maioria dos produtos vendidos nos EUA é importada, principalmente da China. A camiseta polo da Ralph Lauren vem das Filipinas (80 dólares), a calça Diesel vem da Itália ou da Romênia (150 dólares). Em Nova York, a banana orgânica vem do Equador. Compram-se 800 gramas pelo equivalente a 3,17 reais, valor mais baixo que em São Paulo, onde essa quantidade custa 5,99 reais. Sim, o tio Sam vende até banana (importada!) mais barato. O Brasil virou a República federativa dos Olhos da Cara e os Estados Unidos viraram os United States of Banana. Além da carga fiscal, isso é resultado da abertura da economia. Com acordos comerciais e queda de barreiras, o imposto de importação nos EUA vem caindo desde os anos 80. Na última década, a média nunca passou de 2%. Num levantamento com 179 países, a Heritage Foundation, promotora do livre-comércio, montou uma lista das nações mais abertas ao comércio internacional. Os EUA aparecem em l0°.lugar. O Brasil, em 99°, fica atrás até de sumidades como Burkina Faso. Pelo menos está na frente dos outros países dos Brics: Índia (123°), China (138°) e Rússia (144°).

Economias abertas são as que menos punem seus consumidores, mas abrir fronteiras não é um processo indolor. A indústria automobilística americana sangrou com a concorrência asiática. Na crise de 2008, beijou a lona. Com ajuda oficial, reergueu-se e pagou quase tudo o que recebeu do governo. A GM voltou a ser a maior fabricante de carros do mundo. A indústria têxtil é outro exemplo. Quase sumiu do mapa depois que a China, beneficiada pela redução de tarifas e sua imensa mão de obra barata, inundou o mercado americano com vestuário barato. Um pedaço do setor têxtil sobreviveu pendurado no estado, graças à lei que obriga as Forças Armadas a comprar tudo da indústria nacional – uniformes, fardas, barracas, paraquedas. Só aí são 2 bilhões de dólares por ano. Mas, num exemplo de como o mercado pode se ajustar criativamente à realidade, outro pedaço da indústria têxtil virou uma vitrine de alta tecnologia. Hoje, fabrica biotêxteis, tecidos antimicrobianos e antivírus, compatíveis com fluidos e células do corpo humano. Eles são usados em suturas cirúrgicas, aparelhos ortopédicos, válvulas cardíacas, próteses externas e internas, até como pele artificial.

A volta por cima não se deu no vazio: é resultado do dinamismo impar da economia americana e de seu ambiente altamente competitivo. Nos EUA, há liquidação de casacos de lã no inverno, não apenas no verão. A concorrência está no sangue dos americanos. Em Nova York, recebe-se até telefonema de dentista oferecendo clareamento de dentes a bons preços. Com concorrência agressiva, o americano trabalha com margem de lucro mais estreita. Prefere vender barato mesmo tendo de vender mais. Na cultura brasileira, prevalece o inverso. Com margens de lucro maiores, o brasileiro prefere vender caro mesmo que venda menos. Os EUA não fariam nada disso se não tivessem duas grandes vantagens: boa infraestrutura e mão de obra qualificada, sinônimo de alta produtividade. Dos 255 milhões de pessoas que foram à universidade no mundo, 26% moram nos EUA, uma concentração como não se vê em nenhum outro país – nem na China, nem no Japão. A alta escolaridade dos americanos é atávica. Thomas Jefferson, o terceiro presidente do país, já se gabava de que os agricultores americanos eram "os únicos no mundo capazes de ler Homero". Os Estados Unidos, porém, são o único país rico em que há mais universitários se aposentando do que entrando no mercado de trabalho. No Brasil, é o contrário. Neste ano de eleição presidencial, poucas coisas têm sido tão criticadas pelos americanos quanto a infraestrutura do país. Em 2009, um relatório da associação dos engenheiros civis descreveu um cenário dramático. Dizia que os EUA precisam gastar 2,2 trilhões de dólares em cinco anos para voltar a ter pontes, estradas, esgoto e aeroportos em boas condições. Comparada à do Brasil, porém, a infraestrutura americana, ainda que considerada ruim pela opinião local, é um sonho. Os americanos têm quatro vezes mais rodovias, cinco vezes mais linhas férreas e oito vezes mais aeroportos que o Brasil. Estima-se que a redução de 10% no custo do transporte repercuta num aumento de 20% no volume do comércio externo e interno de um país. Diz o economista Carlos Langoni, da Fundação Getulio Vargas: "Até hoje, o açúcar do Brasil vai de caminhão. Se fosse de trem, o custo do transporte cairia até 30%".
"As vantagens americanas são a confluência de uma série de fatores construídos ao longo da história", diz o consultor Sérgio Millerman, da Câmara de Comércio Brasil-EUA, em Nova York. "O Brasil não mudará o cenário geral de uma hora para a outra." O brilhante historiador Gordon S. Wood afirma que os Estados Unidos já nasceram como "a nação mais voltada para o comércio da história". Ainda no século XVIII, o comércio era visto como agente civilizatório. Por encorajar a troca e o intercâmbio, ajudava a selar a confiança entre pessoas e nações. Explorado em todo o seu potencial, levaria até à supressão da guerra. Era nessa alta conta que os primeiros americanos tinham o comércio – e nunca deixaram de vê-lo sob esse ângulo favorável.
A própria mentalidade dos consumidores americanos ajuda a controlar os preços. Criados no capitalismo competitivo, eles foram educados na mais afluente das sociedades de consumo. Na virada do século XIX para o XX, viram nascer as lojas de departamentos, que pela primeira vez ofereceram múltiplas opções de compra num único lugar. Acompanharam o surgimento de novas tecnologias que viabilizaram a modernização das embalagens – garrafas, latas, plásticos – e, assim, fizeram nascer as "marcas". Não se vendia mais arroz a granel, mas embalado, e com nome próprio. Isso deu origem a uma indústria poderosa: a propaganda, que superou a educação e a religião na formação de hábitos de consumo. Os EUA também foram pioneiros na massificação do crédito ao consumidor. Nos anos 50, já usavam cartão de crédito internacional, facilidade que só apareceu no Brasil quarenta anos depois. Tudo isso ajudou a formar hábitos. Os americanos pesquisam, não compram com preço excessivo, não fazem concessões em termos de qualidade e preferem jogar um produto fora a consertá-lo. Hoje, usam Facebook e Twitter para partilhar elogios e críticas a produtos e serviços – de restaurantes a brechós. A empresa criticada na rede social responde de imediato. No Brasil, teste você mesmo: sua crítica pode mofar sem obter resultado algum.

Com tudo isso, o consumidor americano foi forjando um mercado com escala – com produção em massa e consumo em massa – e, também, com o mínimo de burocracia. Se um empresário quiser construir um depósito, conectar a instalação elétrica à empresa de energia e registrar o imóvel, esperará pouco mais de três meses para obter as autorizações e os alvarás. No Brasil, isso levará mais de um ano e meio. O Banco Mundial informa que é mais fácil abrir uma empresa em – de novo – Burkina Faso do que no Brasil. Em termos de burocracia, os americanos vivem em outro mundo, a começar pelo fato de que não têm cartório. Resolve-se qualquer papelada junto à prefeitura, aos bancos ou aos notários. Nem há palavra em inglês que abrace a enormidade do vocábulo "cartório". No Brasil, cartório é tudo. Na pequena Alvinópolis, em Minas Gerais, existem nove cartórios. Em Bodocó, em Pernambuco, existem quatro. É evidente que há algo errado quando 20 000 alvinopolenses e 35 000 bodocoenses precisam de treze cartórios para viver e 310 milhões de americanos não precisam de nenhum. Enquanto o Brasil patina no seu próprio custo e exporta consumidores, os americanos agradam a endinheirada clientela brasileira. Em maio, a Macy"s, ícone do consumo americano, começará uma campanha em homenagem ao Brasil. As lojas de Nova York, Filadélfia, Minneapolis, Chicago e São Francisco amanhecerão decoradas como um oásis tropical. O mote da campanha é "Brasil: jardins no paraíso". Pensando bem, faz sentido.

O desafio tsunami cambial

Em um único dia, 4 trilhões de dólares trocam de mãos nos diversos mercados cambiais de todo o mundo. O volume de negociações é infinitamente superior ao volume das transações comerciais, de 20 trilhões de dólares ao ano. Em um espaço de apenas cinco dias, portanto, os investidores e especuladores compram e vendem moedas em uma quantidade equivalente à negociada em todo o ano pelas operações de comércio. Esses números ajudam a entender por que os países perderam o poder de determinar o valor de sua própria moeda, algo que parecia um direito soberano tão sagrado quanto escolher as cores da bandeira e a letra do hino nacional.

O Brasil, nos últimos anos, vem sendo confrontado intensamente com essa realidade. A economia brasileira tem sido um forte atrator de investimentos estrangeiros em dólar. Parte disso se deve às perspectivas internas favoráveis (crescimento no consumo e estabilidade da política econômica) e externas (valorização rápida do preço dos produtos da pauta brasileira de exportação). Outra parte da explicação está no excesso de liquidez em dólar no mundo, resultado das emissões gigantescas dos bancos centrais dos países ricos, que tentam, assim, reaquecer sua economia, vitimada pelas crises financeiras recentes.

O volume recorde de dólares que entra no Brasil jogou a cotação da moeda americana para um patamar abaixo de seu valor histórico médio. Desde o início do ano, a valorização do real na comparação com o dólar foi a segunda maior do mundo. A presidente Dilma Rousseff descreveu a situação em termos dramáticos: "Estamos preocupados com esse tsunami monetário dos países desenvolvidos. A presidente foi mais sincera e precisa do que seu ministro da Fazenda, Guido Mantega , que enxerga naqueles movimentos uma "guerra cambial". O governo brasileiro decidiu estender a cobrança dos 6% do imposto sobre operações financeiras (IOF) para empréstimos externos feitos por bancos e empresas brasileiros com prazo de até três anos. O IOF antes incidia apenas sobre empréstimos com prazo de até dois anos. Essas ações de controle cambial, além de mascarar as reais distorções da economia brasileira, têm efeito limitado e transitório. Os investidores sempre conseguem driblar medidas como as da semana passada. "As empresas podem fazer financiamentos externos com prazos maiores do que três anos e, assim, conseguem fugir do IOF", diz Bruno Lavieri, economista da consultoria Tendências. Artifícios tributários não farão desaparecer as razões estruturais do custo Brasil.

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