19/07/2017

ARTIGO: A subserviência em decorrência da dívida

Em março de 1988, o estudioso Franz J. Hinkelammert, ao editar o livro “A Dívida Externa da América Latina: O automatismo da dívida” (a edição brasileira pela Vozes saiu em 1989), denuncia os mecanismos de crescimento essencialmente financeiros da dívida, que passa a denominar de fictícia e alerta para a ampliação do grau de dependência dos países latino-americanos decorrente desse mecanismo. Nos anos oitenta, com a crise da dívida externa, o FMI assumiu o papel de negociador em benefício dos bancos credores. Ficaram famosas as cartas de intenções assinadas pelo Brasil com o FMI e as missões de fiscalização dos funcionários do Fundo, que vinham aferir nossas contas. 

Nossa política econômica, no essencial, passou a ser ditada pelos interesses dos credores. Método semelhante foi utilizado pela União no processo de negociação das dívidas dos estados ao final da década de noventa. A Lei Federal 9.496/97, que autorizou a União a fazer a negociação com os Estados, estabeleceu um conjunto de seis fatores condicionantes a serem obedecidos pelos estados-membros (art. 2º), os quais foram atualizados pela legislação recente (em especial a LCF 156/2016), que abriu espaço para a última renegociação e se referem a metas de dívida consolidada, resultado primário, despesa com pessoal, receitas de arrecadação própria, gestão pública e disponibilidade de caixa. Na redação original, “gestão pública” era “privatização, permissão ou concessão de serviços públicos, reforma administrativa e patrimonial” e “disponibilidade de caixa” era “despesas de investimento em relação à RLR”. Trata-se simplesmente do essencial da gestão financeira dos estados, que passou a ficar subordinado aos interesses da política econômica da União.

O recente “projeto de recuperação fiscal dos estados”, expresso no PLP nº 343/2017, vai muito além em termos da dependência e da subordinação da gestão financeira dos estados à União. Ele fixa, na sua proposta original1 , 22 fatores condicionantes que devem ser respeitados pelos Estados alcançados pelo projeto. O primeiro deles é a “privatização de empresas dos setores financeiro, de energia e de saneamento”. Eis o objetivo central: dar sequência ao iniciado em 1998, com a saída do Estado de atividades potencialmente atraentes para o setor privado, abrindo espaço de valorização do capital em áreas anteriormente providas pelo poder público.

Há ainda a exigência de renúncia a qualquer ação judicial para discutir a dívida com a União. O RS possui duas ações tramitando no STF em que alega estar quitada, ou quase, a dívida. Outros dez objetivos são de contenção do comprometimento do orçamento com a folha de pagamentos. Ora, sendo o serviço público uma atividade em que o essencial é prestar serviços, é natural que a folha seja o maior componente dos gastos públicos. No entanto, tendo em conta que no RS aproximadamente 66% dos servidores do Poder Executivo ganham líquidos dois e meio salários mínimos regionais, não é possível inferir que essa seja a causa da crise. Ajustar por aí significará restringir ainda mais os já parcos serviços prestados à sociedade gaúcha. Mas a pá de cal sobre a autonomia dos estados insculpida no caput do art. 18 da CF é a previsão de um Conselho de Supervisão, ou melhor, uma junta interventora composta por três membros indicados pela União com a finalidade principal de monitorar o cumprimento das 22 metas/compromissos estabelecidas e indicar os ajustes necessários para correção de rota. Esse conselho funcionaria diariamente na sede da Secretaria da Fazenda-RS, sob patrocínio do erário gaúcho.

Em 1999, um ano após o primeiro acordo da dívida do RS com a União, os Auditores Públicos Externos do TCE elaboraram um relatório de avaliação do acordo. Conclusão central: “O contrato de refinanciamento retira do Estado a autonomia financeira e administrativa prevista na Constituição Federal”. Tanto naquele momento como hoje, a União se aproveita de uma conjuntura de crise, que não decorreu de ações de responsabilidade dos Estados, e impõe suas condições de resgate. O gráfico a seguir, elaborado a partir de dados da SEFAZ/RS, dá bem a medida do que ocorreu no período anterior ao contrato inicial da dívida com a União (Contrato nº 14/98-STN COAFI). Devido essencialmente à política econômica do Plano Real (1994), que abusou dos juros altos e da sobrevalorização do Real para controlar a inflação, com juros reais anuais de 22% entre 1995 e 19983, nossa dívida saltou mais de $ 30 bilhões sem contrapartida financeira real.

Eis a dívida fictícia que Hinkelammert denuncia em relação aos países da América Latina. Eis a dívida fictícia na origem do nosso endividamento renegociado em 1998. Eis o que a Auditoria Cidadã da Dívida Pública tem denominado Sistema da Dívida: a geração de endividamento por mecanismos essencialmente financeiros, sem contrapartida real de dinheiro novo que permita investir no desenvolvimento econômico e social do ente endividado.

Mas, voltando ao nosso relatório de 1999, alertávamos que os compromissos assumidos com a União eram superiores à média dos dispêndios de anos anteriores com nosso endividamento. Com o passar dos anos isso se confirmou. No período entre 1991 e 1997, antes do contrato (ele foi firmado em 1998), despendemos em média 8% a.a. da nossa receita líquida real com o pagamento de dívidas. Entre 1998 e 2015 esse dispêndio se elevou a 16,63%. Mais que dobrou! Entre jan/1999 e dez/2015, enquanto a inflação oficial, medida pelo IPCA, acumulou 208%, os encargos do contrato com a União cresceram 1.047% (IGP-DI + 6,17% de juros ao ano). A União realizou contra o RS um ganho de 839%.

Relatórios anuais da Secretaria do Tesouro Nacional corroboram ganhos exorbitantes contra os Estados, nos termos do quadro ao lado. Impressionam as cifras. Elas estão na casa dos mil por cento mesmo! O último relatório encontrado no site do TCU indica um ganho de 121.916%. Relatório técnico efetuado pelo TCE/RS5 calcula que, uma vez eliminados os ganhos da União sobre os estados, retirando-se os juros e considerando como encargo apenas a inflação oficial (medida pelo IPCA), a dívida com a União já estaria quitada em maio de 2013. Em maio de 2015, teríamos um crédito de R$ 5,918 bilhões em favor do RS. Importante destacar que, por força do art. 12 da Lei Federal 9.496/97, tudo o que a União arrecada dos Estados por força da dívida tem que ser aplicado no pagamento da dívida da própria União. Eis o elo que liga as finanças estaduais à dívida da União.

Por fim, importante mencionar que, confirmada a adesão ao chamado “regime de recuperação fiscal dos estados”, que suspenderá por três anos o pagamento da nossa dívida com a União, os valores não pagos serão somados ao saldo devedor, resultando num acréscimo estimado de mais R$ 16 bilhões6 a serem pagos. Assim, além de a União seguir gerenciando nossas finanças (agora com uma junta interventora), de liquidar o patrimônio do RS construído ao longo de anos e materializado em suas empresas públicas, de constranger a capacidade prestacional direta do Estado em função das restrições ao funcionalismo, ao final do período teremos uma conta maior a ser paga. Novamente, estamos diante de um péssimo negócio para o RS.

Artigo originalmente publicado na revista Achados de Auditoria, do CEAPE Sindicato.

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