30/08/2021

O futuro da nossa água em jogo

 

Mais dúvidas e críticas do que certezas. É isso que deputados de oposição e até da base do governo, prefeitos e especialistas têm apontado sobre decisões do governo do Estado em relação ao futuro do saneamento. Dois projetos de lei (PLs) apresentados pelo governo gaúcho em relação ao tema estão para análise dos deputados na Assembleia Legislativa (AL) em regime de urgência.

O PL 211 permite a privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan). Já o PL 210 regionaliza o saneamento no Estado. Ambos precisam ser apreciados até a sessão da próxima terça-feira ou nenhuma outra matéria poderá ser votada a partir de então. A pressão de parlamentares e prefeitos é para que o Executivo retire os pedidos de urgência para que haja mais tempo para discutir temas que terão impacto pelas próximas décadas sobre algo vital, a água. A insatisfação ficou evidente em recente audiência pública da Comissão de Assuntos Municipais da Assembleia Legislativa (AL).

"Não estamos tratando da Corsan apenas, mas do futuro do saneamento e da água do Rio Grande do Sul. O governador tem o seu projeto político, mas não tem o direito de tentar atropelar a sociedade e os municípios gaúchos. A grande maioria dos prefeitos e parlamentares recomenda cautela com o patrimônio público, com a água, que é essencial", criticou publicamente o deputado estadual Tiago Simon (MDB), da base do governo. Na tentativa de amenizar os ânimos, o presidente da AL e colega de bancada de Simon, Gabriel Souza (MDB), cogita apresentar proposta alternativa sobre a regionalização, mais "palatável" aos prefeitos. Até sexta-feira não havia decisão se a proposição iria substituir o projeto original.

A tendência é que seja retirado o pedido de urgência do PL que trata da regionalização do saneamento, o que dará mais tempo para eventuais ajustes. Já o PL da privatização deverá ser votado em breve. Na visão do governo, a apresentação dos projetos atende o Marco Legal do Saneamento. Trata-se de uma legislação federal sancionada ano passado. Ela estabelece que quase toda a população tenha acesso à água e esgoto tratados até 2033. No Estado, a principal dificuldade é atingir a meta para o esgoto, já que pouco mais de 32% dele é tratado.

Argumento do governo

O governador Eduardo Leite afirma que sozinha a Corsan não consegue pagar as melhorias necessárias para atender as metas federais, apesar da companhia ter atingido recorde de investimentos em 2020, com R$ 430 milhões – estimativa da atual gestão é que seria necessário triplicar este valor. Por isso, contrariando promessa de campanha, Leite quer vender o controle acionário da companhia. O objetivo é que a privatização propicie investimentos de R$ 10 bilhões em saneamento e abastecimento em aproximadamente uma década. Entretanto, o Estado não teria mais poder de decisão sobre a companhia.

Pressa desagrada

Os argumentos e, principalmente, a pressa do governo não convencem aliados muito menos opositores, que dizem que condicionar a venda da Corsan ao Marco do Saneamento não passa de um pretexto. "O atual governador já manifestou na sua ambição que pretende apresentar a privatização da Corsan como um cartão de visitas às elites financeiras, paulista principalmente. Acho que é muito pouco em se tratando da saúde e da vida dos gaúchos", disparou o ex-ministro dos governos Lula e Dilma, Miguel Rossetto, em recente audiência sobre o tema.

"Embora eu entenda que a empresa pública tenha todas as condições de atender as metas do marco regulatório, os nossos projetos de privatização e regionalização são os piores de toda a federação", reclama o deputado Jeferson Fernandes (PDT). Nem mesmo prefeitos do mesmo partido do governador, o PSDB, apoiam a pressa em relação ao tema. Prefeita de Novo Hamburgo, Fatima Daudt lamentou no começo da semana que o pedido de retirada da urgência do PL sobre regionalização não havia sido garantido pelo Estado.

Marco Legal prevê regionalização

O principal expediente previsto no marco do saneamento para cumprimento das metas é a regionalização do serviço. Na prática, os blocos regionais pretendem unir municípios que são economicamente viáveis com outros que não são. Na teoria, isso fará com que o serviço de saneamento seja prestado de modo uniforme, é o chamado subsídio cruzado, aplicado atualmente pela Corsan.

Além disso, é previsto que consumidores que estiverem na mesma região tenham a mesma tarifa. A União condicionou o repasse de recursos federais para investimento em saneamento básico apenas aos municípios que aderirem aos blocos regionais. A proposta original de regionalização encaminhada pelo Estado à AL foi dividida em dois projetos de lei. O PL 210/2021, encaminhado em regime de urgência, juntou os 307 municípios que têm contrato com a Corsan num só bloco chamado Unidade Regional de Saneamento Básico (URSB) Central.

Já o PL 234/2021, que não tramita em regime de urgência, ou seja, pode ser votado mais para frente, institui três URSBs: Sul, Nordeste e Litoral Norte. O secretário Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura, Luiz Henrique Viana, afirma que o critério utilizado foi a conciliação entre a localização, nas bacias hidrográficas, e a sustentabilidade econômica de cada bloco. Mas há controvérsias se os critérios são estes mesmos.

Presidente da AL tenta consenso

O problema é que a ideia de regionalização do Estado desagradou muita gente, especialmente prefeitos. "Por quatro vezes solicitamos documentos via Federação das Associações do Município do Rio Grande do Sul (Famurs) ao Estado e foram negados. Então, os prefeitos têm sim todo o receio de assinar um aditivo aos contratos para 2060. Isso é impensável neste momento", criticou o presidente da Associação dos Municípios do Vale do Rio dos Sinos (Amvars), o prefeito de Campo Bom, Luciano Orsi, em audiência com deputados.

Uma das principais resistências é que o projeto tira protagonismo das prefeituras em relação à formulação de políticas de saneamento e nos processos decisórios e estratégicos. "O Estado passa a representar muito mais o poder concedente que os municípios. Nestes projetos, cidades pequenas não vão ter voz, nem vez", reclama o deputado Jeferson Fernandes. No esforço de tentar construir um consenso, o presidente da AL, Gabriel Souza, propôs a criação de dois grandes blocos (307 cidades atendidas pela Corsan e 190 que não têm contrato com a companhia).

Só que deu mais autonomia aos municípios e incluiu as 25 sub-bacias hidrográficas, além do Estado, em espécies de consórcios que formularão a política de saneamento das regiões. A ideia foi bem aceita em reunião no começo da semana com prefeitos da Região Metropolitana.

"A proposta apresentada pelo presidente da Assembleia, Gabriel Souza, é um avanço em relação ao projeto de lei que tramita no Legislativo, por considerar as subbacias hidrográficas para a definição das regiões de saneamento e também por garantir maior autonomia dos municípios", admite a prefeita Fatima. Se houver mais tempo para a discussão, o assunto deve ser debatido entre os prefeitos. Há reunião sobre o tema marcada pela Famurs já na segunda-feira.

Tendência é que grandes cidades não aceitem proposta do governo do Estado

Presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos (Comitesinos), atual secretário do Meio Ambiente de São Leopoldo e ex-diretor do Serviço Municipal de Água e Esgotos (Semae) da cidade, Anderson Etter milita no saneamento há mais de 20 anos. A regionalização levando em conta as bacias hidrográficas é uma das defesas do Comitesinos. Nesta entrevista, ele explica as apreensões com as propostas do governo do Estado e as possibilidade para os municípios ampliarem a cobertura de tratamento de esgoto e água potável.

Acredita que falte diálogo por parte do governo do Estado a respeito dos projetos que envolvem o futuro do saneamento no Estado?
Anderson Etter – O governo do Estado teve um ano para realizar este debate com a sociedade, prefeituras, câmaras de vereadores, comitês de bacia hidrográfica e acabou por não realizá-lo da forma necessária. O Marco Legal do Saneamento foi sancionado em 15 de julho de 2020 e o governo federal estabeleceu prazo de um ano para que os Estados organizassem a regionalização do serviço de saneamento básico. Mas o governo estadual não o fez e encaminhou uma proposta com a perspectiva única e exclusiva de privatizar a Corsan. Por isso, nós queremos a retirada do pedido de urgência para debater o assunto. O governo não pode conduzir isso a toque de caixa. Isso não vai prosperar desta forma.

Qual sua opinião sobre o processo de privatização da Corsan?
Etter – Pessoalmente, sou contrário, vide exemplos em nível internacional que já tivemos em todos os cinco continentes e que se mostraram experiências frustradas, onde nós tivemos o aumento da tarifa de água, diminuição da qualidade dos serviços, ampliação dos índices de doenças de vinculação hídrica e estagnação de todo o processo de expansão do sistema de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Por que cidades como Berlim, Paris, Buenos Aires voltaram a estatizar seu serviço de saneamento após uma experiência frustrada de privatização? No momento que o setor privado for explorar este serviço, qual a garantia que o Estado terá de que se vá fazer investimentos em Jaquirana, por exemplo? Ou será que a empresa estará mais preocupada em manter e expandir o serviço na cidade de Canoas? O Estado, sim, tem a condição e o princípio para atender as pequenas cidades, por não visar o lucro, diferente do operador privado.

Por que a proposta de regionalização apresentada pelo governo do Estado não agrada?
Etter – A proposta do governo tira a autonomia dos municípios e estabelece que numa unidade regional só exista um modelo de prestação de serviço. O que nós estamos falando é o seguinte: podemos ter uma unidade regional, agora, se Novo Hamburgo quiser retornar para Corsan, manter a Comusa, passar por uma parceria público-privada ou uma concessão privada é prerrogativa do município tomar esta decisão, o bloco não pode obrigar. O deputado Gabriel Souza, presidente da Assembleia, apresentou uma proposta que dá mais autonomia aos municípios, mas não há ainda redação para ser analisada. Então, neste momento temos dificuldades de aprofundar o debate. Por isso, queremos a retirada do pedido de urgência para podermos debater.

Qual alternativa sugere para este impasse?
Etter – A nossa proposição é de que se constituam unidades regionais, observando a bacia hidrográfica como unidade de gerenciamento e planejamento, e que se preserve algo que é constitucional, que é a autonomia dos municípios quanto aos serviços de saneamento. Se o prefeito de um pequeno município optar por constituir uma autarquia ou um processo de concessão privada, isso é algo que não inviabiliza a regionalização. O fato é que estamos vivendo no País um processo em que a responsabilidade da União, Estados e municípios em promover o saneamento básico está sendo transferida ao setor privado, numa lógica de que as metas de universalização só podem ser alcançadas desta forma.

O Estado e a Corsan dizem que municípios que não aderirem à regionalização podem ficar sem recursos federais para saneamento. Isso preocupa?
Etter – A regionalização não é garantia de acesso a recursos federais. Estamos num quadro econômico-financeiro do País que não nos permite ter uma visualização de que isso seria possível de ser alcançado. Não é a simples adesão a uma unidade regional ou bloco de referência que garantirá, automaticamente, acesso a fundos federais. No entanto, pode ser que após a adesão ao bloco regional, ao invés de se ter acesso a recursos federais, um ou outro bloco inteiro seja concedido a uma concessionária. O governo do Estado só quer formar blocos com o propósito de encaminhá-los para o setor privado. Este é o objetivo central.

A tendência é que as cidades maiores não queiram aderir à regionalização?
Etter – As experiências dão conta que é isso. Em Minas Gerais, as operadoras municipais já se manifestaram, nenhuma vai entrar. E esta é a tendência no Rio Grande do Sul. Porto Alegre já disse que não entra. Caxias do Sul e São Leopoldo também não. Novo Hamburgo e Pelotas têm ressalvas. Volto a dizer, a regionalização não é garantia de acesso a recursos federais.

Mas de que forma estas cidades que não aderirem vão conseguir dinheiro para levar água e esgoto tratados à maioria da população?
Etter – A alteração da lei do saneamento foi para condicionar o acesso a recursos federais na prestação regionalizada. No entanto, se o município é viável ou superavitário, tais recursos podem não ser necessários e a regionalização pode não ser uma alternativa interessante. Por conta disso, há outras formas de financiamento de projetos de infraestrutura, como empréstimos com órgãos internacionais, bancos de desenvolvimento internacionais ou mesmo a emissão de títulos de infraestrutura.

Privatização pode ser votada na terça

Presidente da Assembleia, Gabriel Souza adianta que se não houver opinião majoritária sobre a proposta de regionalização até a sessão de terça-feira, o governador Eduardo Leite irá retirar o regime de urgência ou a AL vai postergar a votação. A ideia é que os prefeitos tenham mais tempo para avaliar a nova proposta apresentada na última segunda-feira. Já o PL da privatização da Corsan deve ir à votação. "Apesar de correlatos, são assuntos diferentes. A privatização diz respeito a 307 municípios. A regionalização aos 497", explica. Na tentativa de buscar o consenso, Souza tentou aparar arestas com a nova proposta.

"A nova proposta de regionalização vem ao encontro do interesse dos municípios, garantindo maior autonomia, em especial para definir a prestação dos serviços e também na questão da governança integrada e regional, através das bacias hidrográficas, que ainda pode incluir a questão dos resíduos sólidos e da drenagem urbana", resume. "O problema é que os municípios âncoras, que têm autarquias, não queriam aderir à regionalização. Com a nova proposta, eles podem. E isso é importante porque do contrário ficarão inviabilizados de buscar recursos federais. Sem isso, muito provavelmente eles não conseguirão recursos necessários para atingir as metas do Marco Legal."

Estado se manifesta

Em nota, a Casa Civil do governo do Estado argumenta que o projeto de privatização da Corsan foi encaminhado em regime de urgência pela preocupação em atender os prazos estabelecidos pelo Marco Legal do Saneamento. Um dos prazos tem relação com os contratos vigentes, que devem ser aditados até março de 2022, com a inclusão de um plano de obras e investimentos detalhado. "Acreditamos que a discussão sobre a privatização tem de acontecer antes desse momento, pois os municípios precisam saber se estão assinando aditivos com uma empresa pública ou privada." Quanto ao regime de urgência no projeto de regionalização, o governo argumenta que não foca no prazo. Mas pondera.

"Quanto mais tempo discutimos sobre a retirada do regime de urgência, mais tempo perdemos para debater o projeto." Questionada sobre o que ocorrerá com o processo de privatização e com a prestação dos serviços se as prefeituras hoje atendidas pela Corsan se negarem a assinar aditivos aos contratos, a Casa Civil se limitou a informar que evita "fazer projeções deste tipo" e que o Estado "trabalha para convencer tecnicamente a sociedade gaúcha da viabilidade e necessidade dos projetos apresentados na Assembleia Legislativa". Sobre as críticas à falta de diálogo, pondera que inúmeras discussões foram feitas no País antes da aprovação do Marco do Saneamento.

"Desde que anunciamos a intenção de privatizar a Corsan, temos mantido um diálogo permanente com os deputados, também com os prefeitos, naquilo que temos como premissa deste governo: transparência e diálogo", defende a Casa Civil, citando oficinas realizadas na Famurs.

 

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